Resenha literária sobre o romance Enterre Seus Mortos, de Ana Paula Maia
Em um dos romances mais marcantes do século XX, A Peste, de Albert Camus (1913-1960), o médico municipal Bernard Rieux enfrenta um surto de peste bubônica na cidade de Oran. A profusão de corpos em todas as esquinas, ruas e casas, o mar de cadáveres e a iminência da morte sob o claustro da cidade sitiada é uma constante. No recente, Enterre seus mortos (Cia das letras, 2018), de Ana Paula Maia, os cadáveres humanos são menos numerosos, mas a sensação de morticínio iminente permanece igualmente contumaz, bem como a sensação de passividade e indiferença perante o inevitável.
Edgar Wilson, o protagonista da trama de Ana Paula Maia, trabalha com remoção de animais mortos em estradas. Em sua caminhonete recolhe as carcaças estraçalhadas do asfalto e as leva para o depósito, onde são descartadas. As descrições secas dos animais eviscerados e da prática maquinal de eliminar seus restos em uma espécie de moedor de carne industrial sinaliza a brutalidade casual que permeia a ambiência criada pela autora e a consequente naturalidade com que a morte é tratada em todo romance.
A reviravolta na rotina de Edgar Wilson se dá quando além dos animais mortos que recolhe diariamente, ele encontra o cadáver de uma mulher. A polícia local, sem veículos disponíveis para buscar o corpo, pede para ele transportar e armazenar a mulher morta junto com as carcaças dos animais que carrega. Edgar Wilson, então, a coloca num freezer velho que estava desativado em sua repartição.
A precariedade dos serviços e o clima de desolação das cenas criadas por Ana Paula Maia vão aos poucos construindo um universo sórdido, áspero, habitado por seres anestesiados em uma rotina em que nada mais parece ter importância. Acontece que tal como Rieux, em A Peste, Edgar Wilson, em meio à profusão sanguinolenta de animas despedaçados, à desimportância da vida humana frente à violência das estradas e à praticidade mecânica dos órgãos públicos, conserva um senso de humanidade que o destaca perante a crueldade absurda de seu cotidiano. Um senso de humanidade que o mete em problemas numerosos, que beiram ao nonsense, e que, por vezes, com ironia bastante peculiar, o colocam acima do universo que habita.
Contra todas as expectativas, Edgar Wilson e seu amigo Tomás, um ex-padre excomungado e assassino, decidem procurar um necrotério para receber o corpo da mulher antes que apodreça no freezer defeituoso, ou que alguém decida que vire carne moída no triturador de animais. Às próprias custas e correndo o risco de serem presos, vão atrás do necrotério mais próximo, em outra cidade. Fazem isso sem um motivo claro o suficiente, apenas com um senso de dignidade que destoa em meio à barbárie degradante das instituições corrompidas e sem condições de funcionamento que tornam a sua tarefa quase impossível.
É essa solidariedade despropositada, esse senso de dignidade para com os estranhos que enchem o personagem de humanidade. A opção pelo mais fácil, pelo descompromisso, pelo confortável nada fazer impelem o leitor a se perguntar repetidas vezes: “mas por que tudo isso, Edgar Wilson?”. E ele segue, em uma trama repleta de meandros, de reviravoltas, de casos e personagens burlescos em sua sina quixotesca em direção a dar um fim decente ao cadáver de uma desconhecida.
A perseverança de Edgar Wilson não tem motivo, é absurda como a morte nas estradas. É um acidente, mas um acidente que tal como o personagem central de A Peste, enche o leitor de um tipo de esperança fugidia, impalpável, como talvez a fé na humanidade, ou a expectativa de que não iremos nos dilacerar em alguma horrível carnificina por um motivo qualquer. A humanidade de Edgar Wilson, sem intenções outras que não a dignidade por ela mesma, talvez seja um fugidio vestígio de esperança em um mundo de morticínios inúteis.
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