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Foto do escritorAfonso Nilson

Você já leu Jhonny Salaberg?

Atualizado: 27 de out. de 2022


O autor Jhonny Salaberg. Foto: Sossô Parma



Ano passado, na IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, evento promovido pelo Centro Cultural São Paulo que fomenta a produção dramatúrgica e viabiliza a encenação dos textos selecionados, Buraquinhos ou o Vento é Inimigo do Picumã, do jovem Jhonny Salaberg, foi um dos premiados. A partir de então o texto e a encenação, com direção de Naruna Costa, tem acumulado algumas das premiações mais importantes da área, e o autor sendo reconhecido como uma das revelações da dramaturgia contemporânea Brasileira.


Nascido em Guaianases, periferia de São Paulo, Salaberg é dramaturgo, ator e bailarino. Formado pela Escola Livre de Teatro de Santo André, atuou em diversas companhias teatrais paulistas, como o Coletivo Estopô Balaio, Cia Clandestina e Carcaças de Poéticas Negras, da qual também é fundador.


Em Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, o autor narra a fuga de um menino de 12 anos pelas vielas da favela onde mora. Abordado pela polícia com um pacote com pães nas mãos, o menino foge e é perseguido pelos militares, que atiram sem cerimônias ou economia. Profundamente poético, onírico, o texto trata com leveza surpreendente o genocídio negro que assola comunidades periféricas no Brasil. Um texto de denúncia, mas de uma poesia avassaladora.


Abaixo, uma breve entrevista com o autor.


Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, foi indicado aos prêmios APCA, Aplauso Brasil, Folha de São Paulo e UOL, e foi um dos vencedores do prêmio CCSP de Pequenos Formatos. Como você avalia o destaque que a temática do genocídio negro obteve a partir da repercussão do texto?


A temática, que não deve ser tratado como tema e sim como base de discussão, expressão e denúncia, já existia antes mesmo do texto ganhar vida no papel e no palco. O destaque, ao meu ver, foi mais pela conjuntura em si, por se tratar de um dramaturgo jovem, negro, gay e periférico que foi o pioneiro a ganhar a mostra de dramaturgia do Centro Cultural São Paulo como primeira obra negra da história. E também pela proposta dramatúrgica, uma tentativa de falar sobre o genocídio negro com poesia e leveza e, ao mesmo tempo, sem perder a urgência e legitimidade. Arrisco dizer que essa dramaturgia é algo novo no cenário teatral paulistano, e digo isso com muita tranquilidade. Costumo dizer também que a obra é uma "armadilha do bem", uma isca para se aproximar do público mais distante e dizer o que tem pra dizer. Muitas pessoas vieram falar comigo relatando a grandeza e surpresa que o texto gera, pois não é algo comum em teatro quando se fala de genocídio negro, inclusive atores e dramaturgos consagradíssimos na cena. O fato é que nós, artistas negros, somos vistos com muita intensidade e agressividade, não se espera que saia poesia da boca de um artista negro que mora na periferia, espera-se que saia bomba, tiro e xingamentos - o grito preso na garganta. Tudo isso é legítimo, o grito é legítimo. Não precisamos florear as palavras para falar algo, já nos basta a indignação da ação. Mas, quando as pessoas brancas leem obras negras com leveza, poesia, refinamento e denúncia, tudo ao mesmo tempo, há um choque de ideias e confusão de imaginário que se tem sobre o artista negro. O racismo está nas entrelinhas.



Cena do espetáculo Buraquinhos. Foto: Alessandra Nohvais

Você faz parte, entre outras iniciativas, do Melanina Digital, projeto que congrega dramaturgos negros com destaque para suas produções, trajetórias e, principalmente, suas obras. Como você vê o surgimento dessas iniciativas para o desenvolvimento da visibilidade da dramaturgia negra e periférica? Que outras iniciativas você destacaria nesse sentido?


O Melanina Acentuada é um projeto incrível, idealizado pelo ator e dramaturgo Aldri Anunciação em Salvador - Bahia. Quando soube do projeto fiquei encantado, é difícil saber de festivais, mostras, feiras e residências voltadas especificamente para a arte negra. Eu comecei minha trajetória artística num programa social chamado Programa Vocacional da Secretária Municipal de Cultura da Cidade de São Paulo, e lá pude experienciar meus primeiros passos enquanto artista consciente do seu fazer diário. Muito do que eu sou hoje devo a esse programa, e se tivesse mais programas como esse ou como o Melanina Acentuada, algo mais elaborado para a população periférica, as coisas seriam um pouco menos penosas. O Programa Vocacional mesmo não sendo voltado especificamente para a arte negra e periférica, é em si uma baita construção de pensamento o alcance do público com os fazeres artísticos, estando e atuando na periferia, dando e oportunizando a palavra e o dizer para jovens em sua maioria negros e periféricos. Não conheço a fundo o projeto Melanina Acentuada, apenas sei que busca enaltecer a dramaturgia negra e que faz isso de forma quase que independente. Em 2018 fui convidado para participar da 5° edição do festival, ministrei uma oficina de dramaturgia periférica e dei uma entrevista ao vivo para o portal. Foi muito importante trocar com os artistas negros de lá, as percepções são outras e as urgências também. A gente reclama da estrutura financeira voltado a cultura de São Paulo, mas lá, e em outros estados, a coisa é bem pior. Melanina Acentuada cumpre um papel exemplar, assim como o Programa Vocacional - hoje extremamente sucateado - cumpriu comigo e muitos outros artistas, de dar as ferramentas e outras perspectivas sobre a história do povo preto e suas diásporas sociais.




Cena do espetáculo Buraquinhos. Foto: Alessandra Nohvais

Seu texto é repleto de procedimentos metafóricos, de distorções da linearidade narrativa em uma dinâmica pulsante, frenética, em consonância à fuga desabalada do protagonista. Como o uso de procedimentos criativos contemporâneos, que distorcem estatutos realistas e desvelam conflitos urgentes da sociedade brasileira permeiam sua obra? Além disso, quais suas principais referências ou modelos em sua escrita?


Eu sou muito imagético, quando estou escrevendo fico na dúvida se estou pesando a mão, beirando a um roteiro de cinema narrado, ou se estou indo pelo caminho da dramaturgia. "Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã" é uma loucura corajosa, quando escrevi não sabia direito o que era dramaturgia e muitas das coisas que hoje são vistas como procedimentos literários vieram de um processo bastante intuitivo, em primeira instância. Eu sou extremamente apaixonado por obras que me tiram do lugar de conforto, que distorcem a noção de realidade e me coloca delicadamente na beira de um precipício, acho que isso foi uma das coisas que instigou a escrever "Buraquinhos" dessa maneira, e porque me move enquanto espectador/leitor. Adoro um desafio! Gosto muito de ler Eduardo Galeano e Italo Calvino, dois escritores que conheci a poucos anos e que mudaram completamente e minha noção de escrita. Ítalo inclusive foi base teórica para a construção do texto, pela forma de falar algo pesado de uma maneira leve, de transmutar a palavra e brincar com ela de diversos modos possíveis. Acho que a vontade de metáforas vem daí também, a gente é o que come, escuta, vê e lê. Gosto muito também de Plínio Marcos, acho que entre os dramaturgos brasileiros, ele é um marco de nossa história. A maneira como desenha os conflitos e subjetividade das personagens é assustadoramente deliciosa, me coloca em estado de criação sempre. Uma escrita marginal, que me pega pelos detalhes e contradição das situações, dando estofo aos apontamentos políticos e sociais existentes em suas obras.



Como foi o processo criativo de Buraquinhos? Você poderia falar um pouco sobre como foi congregar diversas temáticas complementares e suas reverberações num mesmo texto?


Em "Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã", o que surgiu primeiro foi o final, por mais incrível que pareça. Depois, escrevi o começo, o meio e todo a fio condutor que permeia a dramaturgia, No processo de escrita eu me sentia como um jogador de vídeo-game, feliz e empolgado em dar vida ao menino que pulas os postes, anda em nuvens, nada em esgotos e voas pelas escápulas. Lembro-me de sentar para escrever e acelerar a mão, fabulando e criando em cima de tudo e de todos, sem medo de ser feliz. Eu só parava quando o cansaço batia ou quando dava a famosa "crise criativa", que para mim sempre esteve mais no lugar do cansaço mental do que um esgotamento de palavras. Porque depois de um tempo, as palavras se escondem de você e tudo o que você escreve não te seduz, não tem vida, não há necessidade de existir. São somente frases aleatórias tentando explicar para o leitor tudo o que ele já sabe. E quando isso acontece, é melhor parar e ir viver a vida. As palavras precisam de recheio, de vida, de referências, se não eles são só palavras, e de palavras ocas já basta a oralidade. Era isso o que eu fazia, parava um pouco e ia viver, depois voltava e escrevia mais. Na escrita, as coisas iam se misturando e chegou o momento de limpeza e refinamento do texto, ler e desapegar do que não é interessante e, ao mesmo tempo, potencializar algumas coisas que eram interessantes. As coisas foram vindo mais ou menos assim, lendo, assistindo, criando, reciclando, pirando... sempre há uma sensação de aprofundamento, como se a obra nunca estivesse pronta. Mas há o momento em que ela precisa criar raízes pelo o que ela é, decantar as palavras e manter a forma original. Se o texto pedir você mexe novamente, sempre há a algo a mudar ou atualizar. Se não, ele permanece assim, como uma obra de seu tempo e espaço, como um registro do instante em que foi criada. E mais tarde servir de referências para tantas outras obras, em outro tempo.





Em seu texto um menino negro é alvejado por policiais que o perseguem sem outro motivo além da cor da pele e do ambiente em que vive. Várias referências a assassinatos cometidos pela polícia, injustiça social, perseguição contra estrangeiros e à violência carcerária emergem de sua dramaturgia. Para você, a dramaturgia consegue ser efetiva como uma plataforma denúncia? E nesse sentido, como você se define como escritor?


Se o meu fazer artístico não servir de denúncia, no mais puro sentido da palavra denúncia, não vejo sentido em produzir. "Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã" e tantas outras obras que vieram antes dessa, são documentos e estudos reais de denúncia ao genocídio negro e todos os conflitos sociais e humanos de seu tempo. Já passou a época de produção da arte pela arte, nossa consciência política já não nos permite mais isso. A escrita pode ser uma arma de fogo com 20 balas carregada até os dentes ou um flor com cores vibrantes iluminada pelo sol, depende de como você lida com ela. Como disse, lido com esse texto como uma "armadilha do bem", uma isca que pesca o espectador e o coloca onde ele deveria estar: em seu lugar de mundo. Para mim, a dramaturgia e o fazer artístico em referências negras, tem o dever de revelar a história do povo preto e defender seus ideais, materializando o dizer e o agir de forma poética, com palavras e movimentos cortantes. "Buraquinhos ou O vento é inimigo do picumã", como tantos outras obras, cumpre esse papel de forma nítida e objetiva em sua existência, o que é diferente de sua forma e ferramentas. O texto foi responsável por colocar jovens negros dentro da Universidade de São Paulo (USP), participou do 71° processo seletivo da Escola de Arte Dramática (EAD/ECA/USP) como material de estudo de cena em uma das etapas da seleção, além de estar também em processos seletivos de outras escolas de teatro como a Escola Livre de Teatro - lugar em que sou formado como ator - e na SP Escola de Teatro. Se isso não cumprir o papel de ação e denúncia ao genocídio negro e oportunidades sociais que nosso povo carrega de forma poética com narrativas negras e periféricas, eu não sei o que cumpriria. E é por essas e outras que ainda estão por vir, que me defino como um dramaturgo fora dos padrões racistas, alguém que denúncia através de sua arte com poesia, leveza e faca. Querem que eu pare, mas não vou. Querem que eu enlouqueça, mas não vou. O choro é livre e a luta também. O grande mestre, doutor, historiador e artista Salloma Salomão diz uma frase enigmática e ao mesmo tempo direta, que cruza séculos: "A onda é negra". Eu, como um artista desaforado que não se aguenta em ficar parado, peço licença das palavras para acrescentar algumas outras: "A onde é negra, gay, lésbica, trans, gorda e periférica". Segue o baile!



 

Para quem estiver em São Paulo neste final de semana, o espetáculo estará em cartaz no Sesc Ipiranga.


18 e 19 de Maio Sábado 20h30 e Domingo 18h GRATUITO!

Ingressos distribuídos a partir das 17h do dia 18/05 para os dois dias de apresentações em qualquer unidade do Sesc.




 

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